Não é de hoje a experiência da indígena Iracema Sussuarama no auxílio às mulheres em trabalho de parto pelas aldeias da etnia Tupinambá, no sul do estado. Há muitos anos ela já acompanhava a avó nas comunidades indígenas e confessa que perdeu as contas de quantas crianças nasceram com o seu auxílio. “Sempre tive a curiosidade de saber, assistir e participar dos partos do nosso povo”, assegura. Iracema foi uma das parteiras tradicionais que participaram da escuta e da roda de conversa promovidas pelo Hospital Materno-Infantil Dr. Joaquim Sampaio, em Ilhéus, em uma verdadeira troca de experiência que contou com a participação da médica obstetra Carolina Zafalon, que atua na unidade hospitalar. Neste sábado, 20, comemora-se o Dia da Parteira Tradicional. Para muitos, uma atividade que tem perdido espaço ao longo dos anos.
“A gente tem esquecido dessas mulheres tão importantes pra nossa comunidade. E que bom que nós estamos hoje aqui conversando sobre isso, despertando essa consciência nossa da necessidade de a gente valorizar as nossas parteiras, que fazem parte da nossa tradição”, reconhece a indígena Potiratê Tupinambá, da aldeia Itapuan. “Claro que é importante ter o hospital, mas é importante também ter as nossas parteiras que precisam estar em primeiro lugar pra gente”, conclui.
*Poucas parteiras, área extensa*
O alerta da indígena vai muito além do que o natural resgate deste costume. O território da etnia é vasto. As estradas dependem de manutenção. As distâncias são fatores decisivos na hora do parto. Os Tupinambá ocupam uma área de 47 mil hectares no sul da Bahia. A maior parte desta população indígena é formada por mulheres. E para auxiliar a sua população feminina, a etnia conta com apenas 12 parteiras tradicionais. Já foi uma quantidade bem maior de mulheres que guardam o saber sobre o sagrado feminino.
“As parteiras tradicionais elas falam muito da retaguarda. Elas sabem identificar a hora de enviar pro hospital”, explica a médica Carolina Zafalon. A profissional que hoje atua no HMIJS trabalhou muitos anos no terceiro setor, especialmente em comunidades ribeirinhas e indígenas no norte do País. Atuou também no exterior, em áreas de conflito, atendendo às populações vulneráveis. “Elas precisam ter essa retaguarda. Então é importante ter esse acolhimento com elas de entender se elas realmente sabem identificar urgência”, explica a médica.
Para doutora Carol, os profissionais de formação têm que estar abertos a promover orientação pra que as parteiras tradicionais possam identificar os sinais de alerta, os sinais de gravidade para que a paciente consiga chegar a tempo e também com a certeza de que ela vai ser bem recebida. Por este motivo, essa aproximação, na opinião da doutora, é fundamental para pensar que todos são amigos e trabalham juntos.
*Hora da decisão*
A experiente Iracema, por exemplo, viu a própria filha Gabriele, necessitar de transferência para a unidade hospitalar, mesmo diante de todas as intervenções que fez, ainda na aldeia, momentos antes do parto. “Ela queria natural, em casa, ao lado da família. Mas não foi possível”, justifica. Mesmo assim, acompanhou e orientou a filha nas dependências do hospital. “Ela tinha medo do que iria encontrar lá. Se sentisse dor, como seria a reação das outras pessoas ao ouvi-la gritar”, contou Iracema.
Esse trabalho de humanização ao atendimento à comunidade indígena – tanto em reuniões nas aldeias quanto durante a permanência na maternidade - faz parte do Plano de Atenção Especializada aos Povos Originários (IAE-PI), que tornará, em breve, o Hospital Materno-Infantil Dr. Joaquim Sampaio, a primeira unidade da Bahia como modelo de atendimento à população indígena do estado. O plano já foi aprovado pela Secretaria Estadual da Saúde e se encontra em tramitação final no Ministério da Saúde, em Brasília.
A neta de Iracema e filha de Gabriele, nasceu no HMIJS. As massagens, os banhos de folha usados por Iracema ainda na aldeia, por certo, ajudaram durante o inevitável parto cesariano. Yandara Nayhá, que significa “Mãe da metade do dia” simboliza esse encontro entre a tradição e a medicina científica. “A questão da parteira tradicional já tá dizendo, né: tradição. Então segue de mãe pra filha, segue de vó pra neta e aí por diante. Eu acho que não acaba, né. A gente tem que, na verdade, procurar agora se aperfeiçoar pelas tecnologias que existem pra poder trazer e continuar o trabalho dentro da comunidade”, afirma Iracema. “É saber cada um o seu lugar. Eu acho que isso é o mais importante. Não menosprezar o que elas estão dizendo. Eu não tenho nenhum problema, eu gosto, pra mim é um aprendizado também”, completa a doutora Carol.
*Referência*
Única maternidade 100 por cento SUS do sul da Bahia, o Hospital Materno-Infantil Dr. Joaquim Sampaio foi inaugurado em dezembro de 2021 dezembro pelo Governo da Bahia. Desde então, é administrada pela Fundação Estatal Saúde da Família (FESF SUS). Possui 105 leitos para obstetrícia, partos normal e de alto risco, pediatria clínica, UTIs pediátrica e Neonatal e já ultrapassou a marca de seis mil bebês nascidos na unidade.